Ao longo das últimas semanas, nós lemos “Dark Matters: On the Surveillance of Blackness” (“Matérias escuras: sobre a vigilância da negritude”, em tradução livre), livro considerado essencial para entender questões de vigilância. 

A autora, Simone Browne, é professora no departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana na Universidade do Texas e participante do Deep Lab, um coletivo feminista composto por artistas, engenheiras, hackers, escritoras e pensadoras. Browne estuda como tecnologias de vigilância têm objetificado, categorizado e reprimido pessoas negras: dos navios negreiros construídos em formato panóptico (aquele em que os vigiados não conseguem ter certeza se estão sendo observados ou não) durante a “passagem do meio” até as ferramentas de policiamento modernas usadas contra manifestantes. 

Logo no começo de Dark Matters, Browne explica que dentro do campo de estudos de vigilância há pouca teorização sobre raça. De forma geral, questões raciais ainda são pouco abordadas nessa área de estudo. O que a autora sugere no livro de forma brilhante é que uma compreensão da ‘negritude’ é essencial para desenvolver teorias sobre as formas de vigilância contemporâneas. Essa compreensão é especialmente importante para entender as práticas de ‘vigilância racializante’: ou seja, uma forma de controle social onde o uso de tecnologias de vigilância que reforçam limites, fronteiras e corpos de acordo com divisões raciais, resultando em tratamento discriminatório e violento.

Ao longo do livro, Browne se apoia em estudos de feminismo negro para mostrar como as diferentes práticas, performances e políticas relacionadas à vigilância operam de maneira interseccional nas vidas de pessoas negras. O livro de Browne é bem vasto e explica minuciosamente como a vigilância sempre reforçou o racismo, por isso sugerimos uma leitura completa. Aqui reunimos algumas ideias e conceitos que chamaram nossa atenção:

“A vigilância não é nada de novo para pessoas negras”

Browne mostra que as pessoas negras sempre estiveram submetidas a práticas de vigilância. Nesse sentido, a formação história da vigilância não está distante da formação história da escravidão, por exemplo.

Existem muitos exemplos de como tecnologias de vigilância operaram contra pessoas negras ao longo da história. Dois deles são bastante mencionados em Dark Matters:

  • Marcação de corpos de pessoas escravizadas (“branding”). A autora aponta a prática usada por escravocratas de marcar pessoas escravizadas como ferros quentes como uma forma de vigilância racializante. Este ato violento, além de ser uma forma de tortura e punição física com o objetivo de desumanizar as pessoas escravizadas, tinha também o propósito de funcionar como uma tecnologia de biometria, identificando as pessoas escravizadas como commodities ou itens comercializáveis. 
  • As “leis da lanterna” (“lantern laws”). As leis da lanterna eram leis usadas no século 18 em Nova Iorque que exigiam que pessoas escravizadas negras, mestiças ou indígenas carregassem lanternas acesas todas as vezes que andassem pela cidade depois do pôr do sol e sem a presença de uma pessoa branca. Esta lei também previa punições para quem não a seguisse. A autora usa este exemplo para mostrar como uma prática que colocava as pessoas racializadas em um estado de iluminação e evidência constante. O corpo negro iluminado, tecnologicamente em destaque, se tornava mais visível e ao mesmo tempo, menos humano. 

Browne também conta que, ao mesmo tempo em que práticas de vigilância atuavam sobre as vidas e os corpos de pessoas negras, técnicas de resistência eram praticadas. O conceito chamado de “dark sousveillance” (ou, sub-vigilância escura, em uma tradução livre) se refere às formas encontradas por pessoas negras de resistir e desafiar a vigilância. Essas formas de resistência incluem: manifestar verbalmente insatisfação e oposição (“talking back”), escapar da escravidão; assumir outras identidades e outros nomes; agir com “insolência e indisciplina”.

Dark Matters também nos mostra como tecnologias de vigilância são especificamente prejudiciais para as vidas de pessoas negras atualmente. No quarto capítulo do livro, a autora examina como os procedimentos de segurança em aeroportos são desproporcionalmente direcionados para pessoas negras. Ela conta que mulheres negras têm mais chances de sofrerem buscas invasivas do que mulheres brancas, mesmo a probabilidade de mulheres negras estarem carregando contrabando sendo menor. 

“Todas as tecnologias são atividades humanas”

A leitura de Dark Matters nos lembra que tecnologias digitais são criadas e operadas por pessoas. A noção de que tecnologias, como biometria por exemplo, são objetivas e neutras é falaciosa – e Browne demonstra isso inúmeras vezes. A noção de uma “prototipicidade branca” (“white prototypicality”) indica que muitas tecnologias são construídas de forma a ter aquilo que é branco como padrão, gerando resultados discriminatórios (e, muitas vezes, violentos) para pessoas racializadas.

Browne sugere que temos que questionar os efeitos que determinadas tecnologias têm nas relações de gênero e raça. Isto é, temos que descobrir como essas tecnologias são ideologicamente moldadas pelas noções de gênero e raça vigentes na nossa sociedade. E isso inclui as tecnologias biométricas. Em um mundo onde cada vez mais nossos dados biométricos estão sendo armazenados e usados por empresas e governos, ter uma consciência crítica sobre essas tecnologias é crucial.

Para quem quer saber mais sobre o trabalho da Simone, recomendamos os seguintes materiais:

E para quem se interessa por temas de raça e tecnologia, recomendamos a lista de livros no blog do Tarcízio Silva e os materiais do grupo de estudo do Minas Programam.