Em abril, lemos o livro “Um pé na cozinha: um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil”, de Taís de Sant’Anna Machado. 

Doutora em sociologia pela Universidade de Brasília, Taís de Sant’Anna Machado tem se aprofundado no campo de estudos críticos de alimentação no Brasil a partir da experiência de trabalhadoras negras e das contribuições teóricas de intelectuais negras. Seu livro, “Um pé na cozinha”, é uma “análise da história do trabalho de mulheres negras na cozinha e desse trabalho como ferramenta de entendimento da sociedade brasileira”.

Estratégias de sobrevivência, resistência e criatividade

Ao longo do livro, Taís de Sant’Anna Machado pensa as trajetórias de vida das chefs e cozinheiras em toda sua complexidade: além de destacar os impactos prejudiciais do racismo antinegritude, do sexismo, e do classismo em suas trajetórias profissionais, a autora também traz à tona a maneira como essas profissionais buscam brechas e constroem para si espaços na gastronomia. 

Em “Um pé na cozinha”, conhecemos algumas das estratégias usadas por cozinheiras negras brasileiras no século 18 e 19, que trabalhando em condições exaustivas, precárias e miseravelmente remuneradas, encontravam formas de construir e manter laços familiares e comunitários em prol da sobrevivência; e aprendemos também sobre as estratégias desenvolvidas por chefs e cozinheiras entrevistadas pela autora para enfrentar o cenário do trabalho culinário profissional dos séculos 20 e 21. 

Olhando para os séculos 18 e 19, a autora expõe como o trabalho culinário de mulheres negras era permeado por condições de trabalho exaustivas, insalubres e violentas e como, apesar disso, essas mulheres foram capazes de “construir e preservar uma autodefinição”, desafiando o tratamento desumano ao qual eram submetidas; exercer sua subjetividade; criar espaços comunitários de troca e afeto; e de “se movimentarem em uma sociedade que tornava sua sobrevivência impossível”. 

A autora mostra também como as cozinheiras negras brasileiras ao longo dos séculos 20 e 21 continuaram a desenvolver estratégias de sobrevivência e criatividade, mostrando ao mesmo tempo a perspicácia dessas trabalhadoras para sobreviver a condições desafiadoras (e muitas vezes violentas) de trabalho e a importância das mulheres negras na constituição social do Brasil.

É através dessas estratégias que cozinheiras negras construíram “outros mundos sobre e para mulheres negras”: “Por meio da generosidade das diversas formas de cuidar, talvez este seja o maior legado da agência e da resistência de cozinheiras negras: o de conceder aos filhos e à comunidade negra a possibilidade de habitar outros mundos e sonhar com outros futuros, a ser forjado por elas e por eles”. 

Expectativas deturpadas no mundo profissional: a etiqueta racial profissional 

Ao se debruçar sobre as experiências e percepções críticas de chefs e cozinheiras negras na gastronomia, Taís de Sant’Anna Machado apresenta o conceito de “etiqueta racial profissional”. 

Em suas entrevistas, a autora observa a existência de uma etiqueta racial profissional entre as chefs e cozinheiras de cozinha. Apoiada nas ideias de imagens de controle de Patricia Hill Collins, Machado define a etiqueta racial profissional como a “exigência de que trabalhadoras negras estejam de acordo com a docilidade, a subserviência, a gratidão e a passividade da imagem de controle da mãe preta, criada por folcloristas e literatos brancos para naturalizar a expropriação econômica e a exclusão social de mulheres negras“. 

Taís de Sant’Anna Machado relembra como se comportar de acordo com esta etiqueta se torna a expectativa para mulheres negras em toda e qualquer profissão e que “a necessidade de desenvolvimento e aprendizado de um código de conduta” é observada nos trabalhos de outras intelectuais negras sobre trajetórias de mulheres negras em diferentes contextos e períodos históricos. Ela cita, por exemplo, a pesquisadora Caetana Damasceno, que entrevistou trabalhadoras negras que chegaram a postos de trabalho mais valorizados para compreender como elas lidam com violência racial em seus cotidianos. Damasceno observou como trabalhadoras negras tentam minimizar traços fenotípicos de negritude para conseguir trabalho e desenvolvem certos “padrões de comportamento” para acessar postos mais valorizados. 

Em “Um pé na cozinha”, Taís de Sant’Anna Machado apresenta algumas das estratégias desenvolvidas pelas profissionais negras, chefs e cozinheiras, para contornar e tensionar essa etiqueta racial profissional. Em nossa leitura, ficamos tocadas pela forma cuidadosa com que a autora apresenta as trajetórias de vida e as estratégias das profissionais entrevistadas: transmitindo suas histórias de forma a respeitar sua humanidade, engenhosidade e agência; conversando com as leitoras sobre as decisões metodológicas que tomou para não colocar em risco as carreiras dessas mulheres; e optando por não desvelar todas as tecnologias de sobrevivência que poderiam colocar em risco a subsistência dessas mulheres. 

Leia “Um pé na cozinha”: 

Recomendamos muito a leitura de “Um pé na cozinha” para quem se interessar em saber mais sobre a importância das mulheres negras na constituição social do Brasil. O livro está disponível no catálogo da Fósforo Editora e a autora compartilha muitas reflexões em suas redes sociais (@taisando).