Oi, minas! Depois de alguns meses, estamos de volta com a série de entrevistas com mulheres negras na tecnologia. Dessa vez conversamos com a Aline Rocha, Team Leader da IBM. A Aline tem 28 anos e 10 anos na carreira de TI. Ela tem curso técnico em Sistemas da Informação, graduação em Análise e Desenvolvimento de Sistemas e atualmente cursa MBA em Análise de Dados com Business Intelligence e Big Data.

Aline Rocha

Nessa entrevista, a Aline conta de como ver outras pessoas negras nas áreas de exatas foi fundamental para o seu envolvimento com TI e como tem sido o seu desenvolvimento profissional na área.

Vocês podem acompanhar o trabalho da Aline por aqui.

 

Minas Programam: Conta pra gente um pouco da sua história?

Aline Rocha: Olá, leitores! Eu sou a Aline Rocha, tenho 28 anos e um guri de quase 3. Sou de Campinas, interior de São Paulo e trabalho em TI há exatamente 10 anos (do meu primeiro emprego até hoje, na IBM – carinhosamente chamada de Big Blue).

Hoje, além da parte técnica que não abri mão, também sou Team Leader (cargo conhecido fora da IBM como Coordenadora de TI) do meu time no Brasil e também parte nos EUA. Sou negra, mas nem sempre conseguia falar isso com tanta naturalidade. Antigamente, me denominava no máximo parda ou “morena escura”. Nasci na favela, e embora não tenha vivido boa parte da minha vida nela, sempre morei em bairros periféricos. Se eu estou onde me encontro hoje, é tudo graças aos meus pais e minha família, que mesmo nas dificuldades SEMPRE me estimularam a estudar (seja na escola estadual, ou na bolsa que conseguimos para o colégio técnico).

Fora o lado técnico, também sou voluntária dentro da própria empresa em um grupo de afinidades de Afrodescendentes, onde buscamos promover a diversidade e a inclusão de afrodescendentes. Também temos o grupo LGBT+, PCDs, Mulheres… e é MUITO gratificante atuar nessas frentes dentro do meu próprio trabalho!

Minas Programam: Como foi a decisão de estudar e trabalhar com tecnologia?

Aline Rocha: Bom, a escolha foi por uma influência (boa!) da minha família. Quando eu nasci, meus irmãos mais velhos já estavam se formando no colégio técnico em processamento de dados. Eu sou a caçula de tudo, uns 18 anos de diferença do mais velho. Lembro bem que eles faziam cursos voltados para informática e estudavam no colégio técnico no centro da cidade (achava aquilo chique demais e botei na cabeça que no meu colégio eu também faria um técnico, sem nem saber como e o que era). E foi assim que eu vi um computador na minha frente pela primeira vez dentro de casa, ainda pequena. Acredito que isso fez toda diferença na minha escolha, já que meus irmãos mais velhos eram exemplos. Achava aquilo tudo “coisa de gente inteligente” e sempre ficava no pé para ficar fuçando no computador (nem que fosse pra usar o Paint, lá em 1995).

Meus pais e meus irmãos jamais me limitaram em relação à isso, nem nunca me influenciaram a ir por outro caminho. Sempre adorei quebra-cabeças, montar carrinhos, montar e desmontar todos os brinquedos várias vezes. Acredito que se mais meninas tivessem a chance de serem estimuladas a brincar com outros brinquedos além de serem estimuladas a brincar apenas com bonecas ou panelas e demais atividades que estimulam somente a parte doméstica e da maternidade, teríamos um número muito maior hoje de mulheres em TI. Também não estou falando que sou contra meninas brincarem com bonecas, longe disso! É só preciso diversificar e mostrar que menina também pode [se envolver com tecnologia], e tá tudo bem! Eu era a menina que namorava os brinquedos que ficavam na parte dos “brinquedos de meninos”.

Agora, falando sobre minha formação: comecei com o colégio técnico em Sistemas da Informação e me graduei no ensino superior em Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Atualmente estou cursando MBA em Análise de Dados com Business Intelligence e Big Data. O meu trabalho não é muito usual em TI. Nesses 10 anos de IBM, sempre trabalhei com Mainframes (aqueles computadores lindões que parecem um transformer!). Primeiro, como operadora de sistemas. Aqui foi minha maior escola, onde aprendi como funcionava o meio corporativo e a criticidade do meu trabalho e o impacto que traria caso algo desse errado. Depois, após quase 2 anos, fui promovida para trabalhar como Analista de Sistemas, onde, resumidamente, meu foco é no sistema operacional que roda no Mainframe (chamado de z/OS). Meu time e eu somos responsáveis por garantir a estabilidade desses sistemas aplicando correções, fazendo upgrades de versão, resolvendo bombinhas, desenvolvendo uma coisa ou outra com algumas linguagens de programação e scripts para melhoria de processos e automações. Enfim, gosto muito de tudo isso! Pra quem não sabe muito bem o que é o Mainframe, ele fica beeem no background de tudo e é, normalmente voltado para sistemas de grandes corporações. Pra ter uma idéia (ou pra quem pensa que o Mainframe já morreu), a última versão, possui modestos 32TB de memória real e executa aplicações Java até 50% mais rápido que processadores x86. Também tem a capacidade de criptografar qualquer coisa que passar por ele: mais de 12 bilhões de transações criptografadas por dia em um único sistema, além de estar preparadíssimo para a tendência de IoT e Data Science! Caso você tenha ouvido falar que o Mainframe (assim como o COBOL) vai morrer, eu confirmo que é tudo mentira! Também atuo dando treinamentos de Mainframe internamente, programação e palestras sobre Big Data.

Minas Programam: Você teve/tem que lidar com racismo e machismo nas instituições (de ensino e de trabalho) que você frequenta? Se sim, como foi essa experiência? Quais os principais obstáculos que enfrentou?

Aline Rocha: Infelizmente, sim. E o pior é que eu só fui me dar conta de que vários acontecimentos na minha vida foram racismo recentemente. E por que só recentemente? Porque eu internalizava tudo de modo a achar que o problema era eu e minha auto-estima baixa.

Quando zoavam e me isolavam por causa do meu cabelo, ainda na infância, com piadas sobre como parecia bombril (entre outros), eu achava que só alisar o cabelo já era o suficiente “para resolver o problema”, e assim o fiz até ano passado. Na adolescência, o racismo se moldava na forma de comentários como “até que pra uma negra, você é bonita!”, “você é negra mas tem um rosto angelical, diferente das outras”. Eu, com a minha auto-estima baixa, achava que isso era um elogio e vida que seguia. Na vida adulta, na faculdade, foi fácil perceber os olhares surpresos quando percebem que eu estou entrando em uma sala de TI, sendo uma das poucas mulheres e ainda por cima, negra. São olhares que de certa forma, me desafiavam, como se eu não devesse estar ali. Mas, eu nunca duvidei do meu potencial técnico e não deixei isso me tirar do foco e da minha paixão pela área. E se eu pudesse dar algum conselho pra qualquer pessoa que se sinta desafiada a desistir por conta disso, embora seja doloroso e desanimador: não desista!

O racismo está tão institucionalizado que embora hoje eu consiga lidar de uma outra forma com isso, o sinto várias vezes. É comum, mesmo estando em um trabalho bacana na área de atuação que eu escolhi, ainda ser subestimada por pessoas que não me conhecem, como se não fosse possível, mas isso de forma alguma me desanima, faço questão de mostrar que lugar de mulher e negra é onde ela quiser!

Minas Programam: Qual a importância de discutirmos gênero e raça nas ciências e tecnologia?

Ao meu ver, é extremamente importante. Muitas pessoas nas áreas de ciências e tecnologia não possuem experiências profissionais e pessoais com pessoas negras e mulheres. Isso de certa forma, cria uma blindagem nesses meios, mesmo que de forma inconsciente – o famoso viés inconsciente. Participei de sessões de mentorização reversa com executivos e gerentes contando sobre o racismo sofrido e as barreiras superadas, e é incrível a sensibilização pelo simples fato de parar por uma hora para ouvir o que o outro tem a contar, de mente aberta! Acredito muito na empatia. A discussão é importante para de certa forma, tentar quebrar esse lado inconsciente e fazer essas pessoas perceberem como a inclusão dessas pessoas é enriquecedor, tanto profissionalmente quanto pessoalmente para ambos os lados.

No lado profissional, já é provado que empresas que promovem a diversidade possuem um ganho e uma capacidade maior de resolução de problemas, já que as vivências de cada um tem influência nisso tudo  – e aqui, não estou falando sobre marketing, onde muitas empresas acreditam que uma propaganda bonitinha com um casal negro do dia dos namorados é suficiente para se considerar “inclusivo”. Um ambiente verdadeiramente inclusivo promove segurança e confiança de todas as pessoas envolvidas em seu ambiente de trabalho, independente de credo, raça, gênero e orientação sexual. Com isso, todos saem ganhando: ganha quem se abre para tornar um ambiente inclusivo, acompanhando outras formas de pensar e de encarar a vida. Para nós, mulheres e negras, é um alívio se sentir verdadeiramente acolhida pelo que somos e ter o nosso potencial reconhecido.

Confesso que eu mesma, durante o meu processo de reconhecimento racial, percebi mudanças na minha forma de trabalhar e liderar minha equipe, afinal, posso finalmente viver sendo eu mesma. Resumindo, é essencial continuar discutindo gênero e raça, que por mais que pareça um trabalho a longo prazo e de formiguinha diante do nosso cenário atual, tem que ser feito. Para muitos, é uma discussão incômoda, mas tá na hora de todos sairmos das nossas zonas de conforto e participar dessas discussões para que os próximos depois de nós encontrem um cenário cada vez melhor! 🙂 Sejamos disruptivos!

Minas Programam: Ao longo de nossas trajetórias educacionais, nós, mulheres negras, somos pouco estimuladas a seguirem carreiras que fogem dos estereótipos de sempre. Como você acha que podemos quebrar esse ciclo? Que oportunidades fizeram a diferença pra você?

Na minha trajetória, o simples fato de observar meus irmãos, negros, estudando em carreiras de TI, me fez entender que não há barreiras para nossos sonhos, por isso, por mais que pareça um clichê, representatividade importa! Acredito que a forma de estimular cada vez mais jovens negras a seguirem carreiras como áreas de exatas e TI, é serem incentivadas pelo exemplo, e aqui conto algo que foi um marco recente: em Setembro de 2017, a IBM realizou o Black Women In Tech em SP, evento voltado para mulheres negras cursando cursos técnicos de TI em ETECs e FATECs. Foi uma manhã cheia de aprendizados.

Tivemos um painel com mulheres negras falando um pouco sobre suas carreiras, desafios e conquistas e também um hands on sobre chatbot utilizando Watson como tecnologia. No painel, coordenadoras, gerentes de projetos, empreendedoras e executivas em TI: todas negras! Eu era uma das painelistas, convidada pelo grupo de Afrodescendentes que até o convite, ainda não fazia parte. Só tenho a dizer o quanto aquilo tudo me emocionou: vi meninas chorando muito, olhos brilhando e emoção à flor da pele. Isso tudo pelo simples fato de estarmos ali, em uma empresa gigante de TI, mostrando para elas que ali também é o lugar delas! Vi muitas comentando que não imaginavam que uma empresa tão grande de TI também tivesse mulheres negras tendo sucesso em suas carreiras. Isso me vez ver, na prática, que sim, representatividade importa, e que eu poderia contribuir cada vez mais no empoderamento de jovens negras. Saí pensando que talvez, na minha adolescência, se eu tivesse ali, na platéia, vendo tudo aquilo, entenderia que eu não tinha nenhum problema a ser resolvido por ser mulher negra e de cabelo crespos. Hoje, procuro atuar de forma ativa onde trabalho, como voluntária do grupo de diversidade Afro e muito feliz de ter minha voz ouvida em diversos meios, dentro e fora do trabalho!