Em abril nós mergulhamos na leitura do livro “Against Technoableism: Rethinking Who Needs Improvement” (em tradução livre, algo como “Contra o tecnocapacitismo: repensando quem precisa de melhorias”), da Ashley Shew, professora de ciência, tecnologia e sociedade da Virginia Tech.
O livro é informado pela formação acadêmica de Shew e também por sua experiência como pessoa com deficiência e seu envolvimento com comunidades de defesa e ativismo de pessoas com deficiência. A obra traz muitas referências de pesquisadoras e pesquisadores, ativistas que são pessoas com deficiência e que estão pensando criticamente sobre a relação entre capacitismo e tecnologia.

Capa do livro “Against Technoableism”, escrito por Ashley Shew.
O que é tecnocapacitismo
A prof. Ashley Shew criou o termo “technoableism” (ou o “tecnocapacitismo”, se fôssemos traduzir em português) para descrever a crença no poder da tecnologia como uma forma de eliminar deficiências – como se a eliminação de deficiências fosse uma coisa boa, um futuro que temos que almejar. Tecnocapacitismo é, em outras palavras, a crença na tecnologia como uma “solução” para deficiências; na ideia de que pessoas com deficiência simplesmente esperam ser “consertadas” pela magia tecnológica; e a noção de que tornar a sociedade mais acessível e equitativa é, de alguma forma, uma prioridade menor. Ela mostra como é problemático pensar apenas tecnologias que sejam feitas para “consertar” pessoas com deficiência, presumindo que essas pessoas precisam ser “modificadas” para ter uma existência considerada adequada:
“Com a constante louvor e promessa [na mídia e no entretenimento] de corpos-consertados-através-da-tecnologia, vemos que ser uma pessoa com deficiência é visto como um jeito ruim de ser, e que pessoas com deficiência deveriam ser alteradas para serem merecedoras” (tradução livre).
Já no primeiro capítulo, a autora traz duas distinções importantes – que vão dar o tom do livro todo – entre dois modelos existentes para pensar sobre deficiência: o “modelo médico” e o “modelo social”. Segundo Shew, no chamado modelo médico, as deficiências são vistas como coisas “fora da norma” e que precisam ser resolvidas, curadas, eliminadas. Para a autora, é um modelo que estimula uma interpretação das deficiências como algo para se evitar, para se temer, para lamentar. E, acima de tudo, é um modelo que vê as deficiências como “um problema que reside nos indivíduos com deficiência”. Já o modelo social insiste que as deficiências são um fenômeno social, que varia de acordo com o contexto em que estamos inseridas. Neste modelo, explica Shew, o problema a ser resolvido não está nas mentes ou nos corpos das pessoas com deficiências, e sim nos estigmas e nas barreiras impostas pela sociedade. Shew mostra que o modelo social expande nossas visões sobre deficiência, desconstruindo a ideia que deficiências são “anormais” e que corpos e mentes de pessoas com deficiências precisam passar por intervenções para serem “normalizados”.
“Existe uma expectativa que corpos e mentes de pessoas com deficiência chamam por melhorias, consertos, certos tipos de cuidados. Mas esses chamados imaginários raramente centram as experiências e desejos de pessoas com deficiência. Nós raramente reconhecemos a experiência de pessoas com deficiência sobre o que funciona e o que não funciona, e quais são boas abordagens para tecnologia e deficiência para pessoas com deficiência. A maioria das pessoas com deficiência certamente não odeiam tecnologia, mas muitos de nós têm ressentimentos em relação às representações estereotipadas e tristes de tecnologias centradas em salvadores que não são pessoas com deficiência e as suas ideias sobre o que nós precisamos”. (tradução livre)
No livro, Shew também explora como o tecnocapacitismo se relaciona com o acesso à infraestrutura de saúde, desigualdade e a relação entre deficiência e raça.
Pessoas com deficiência são as verdadeiras experts quando o assunto é tecnologia e deficiência
Novas tecnologias inevitavelmente geram questões sobre que tipos de pessoas queremos ser e que tipos de sociedade queremos ter. Quando o assunto é tecnologia, ciência e deficiência, Shew chama atenção para como pessoas com deficiência raramente são incluídas nas discussões sobre o que tecnologia significa e sobre como ela pode ser integrada no dia-a-dia.
Partindo da noção de que deficiências são parte da existência humana, a autora apresenta um argumento convincente de que nós não devemos ir em direção a um mundo onde toda a diferença é “normalizada” e “apagada” com tecnologias. Ao invés da retórica frequente de que o progresso tecnológico é a “salvação” das pessoas com deficiência, Shew argumenta por um futuro onde não enxerguemos deficiências como “problemas a serem resolvidos pela tecnologia”. Em outras palavras, enquadrar as deficiências como o problema, nos distrai do problema real: o mundo é feito para excluir pessoas com deficiência.
Ao longo do livro, Shew explica que um grande mecanismo do capacitismo é justamente excluir pessoas com deficiência do desenvolvimento e da implementação de tecnologias que vão impactar suas vidas. Como professora na Virginia Tech, Shew ensina uma aula sobre tecnologia e deficiência, priorizando literatura e materiais produzidos por pessoas com deficiência – e não por “experts” que não são pessoas com deficiência. No livro, a autora também menciona outras pesquisadoras e pesquisadores que estão pensando nisso, como Rua Williams, que tem um laboratório de interação humano-computador onde pessoas com deficiência são envolvidas no desenvolvimento de pesquisas com poder para intervir e corrigir as suposições da equipe de pesquisa e mudar a direção dos projetos de tecnologia.
Em “Against Technoableism”, a pesquisadora defende que precisamos criar e desenvolver tecnologias de forma mais acessível, através do investimento em infraestrutura e programas e redes de cuidado que permitam que mais pessoas possam viver e prosperar. Precisamos olhar para as comunidades de pessoas com deficiência, de forma interseccional e conectando vários tipos de deficiência, para buscar o conhecimento que precisamos para construir futuros em que nenhuma pessoa fica de fora.
Recomendamos muito a leitura de “Against Technoableism” (disponível atualmente apenas em inglês) a todas as pessoas interessadas em ética, justiça social e tecnologia.
Abaixo, compartilhamos uma apresentação da Prof. Ashley Shew para o canal Feminist Publishing and Tech Speaker Series.