O contexto da Governança da Internet

Realizada em 2017, uma pesquisa da Quartz, agência estadunidense especializada em economia e inovação, apontou que 55% dos brasileiros consideram que internet e Facebook são a mesma coisa. Ou seja, mais da metade de nós acha que o Facebook é a própria internet. Isso reflete a maneira que o acesso à rede ocorre em nosso país. A relação dos usuários com a internet no Brasil é permeada pelas desigualdades sociais e é diretamente determinada por fatores como classe, raça, regionalidade e gênero. 

De acordo com uma pesquisa de 2018 realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), entidade que tem a missão de monitorar a adoção das tecnologias de informação e comunicação (TIC), no Brasil, 67% dos domicílios brasileiros possuem acesso à internet, porém 20% só o tem pelo compartilhamento com domicílios vizinhos. Além disso, 27% das casas que possuem acesso a internet o fazem apenas pelas redes de telefonia móvel (3G/4G), o que torna o celular a principal fonte de conexão para as pessoas, principalmente, das classes D e E, sobretudo nas periferias e zonas rurais do país, em que 85% da conexão é só através do celular. 

Esse panorama tem desdobramentos delicados para a nossa sociedade. Como se tem debatido muito, o Facebook (e outras redes sociais) têm transformado a forma como as pessoas se relacionam dentro, e também fora, da rede: discurso de ódio exacerbado e a propagação de notícias falsas são apenas alguns dos exemplos. Além disso, a restrição à democratização do acesso à internet fere princípios fundamentais e direitos básicos de grandes parcelas da população não apenas do Brasil, mas do mundo inteiro.  

Porém, a internet não é um fenômeno natural, ela é uma invenção humana e suas características dependem de escolhas e priorizações. Para tomar decisões sobre a internet e tornar os desenvolvimentos tecnológicos da rede mais abrangentes e globais, surgiram, ao longo dos anos, esforços e iniciativas de criar uma governança da internet. 

Como funciona?

Governança pode parecer uma palavra estranha ao falarmos do contexto de internet, não é? Afinal ela é conhecida por ser “uma terra de ninguém”, já que não existe um dono da internet e nenhuma instituição tem domínio absoluto sobre o funcionamento da rede. Além disso, como seria possível governar algo que é construído coletivamente por cidadãos de vários países? Que regras valem no mundo digital?

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), os Direitos Humanos, por exemplo, também devem ser respeitados on-line  e a quebra de algum deles é passível de punição. Regras que vão além disso, contudo, são difíceis de definir, afinal a internet é algo global e os países só têm constituições que envolvem o seu próprio território. Por isso essa coisa de “governança da internet” é algo que deve ser discutido a nível internacional e gera muitos conflitos. Definir leis para sociedades com culturas tão diferentes é um desafio e tanto na área do direito internacional. Justamente por não ser algo fácil e afetar a vida de tantas pessoas que o debate sobre esse tema deve ser realizado coletivamente e não envolver apenas ~especialistas~.

Além disso, existem as partes da rede da internet que são privadas. Todas aquelas plataformas que precisam de senha e são chamadas de intranets, como é o caso das redes sociais. Esses espaços possuem suas próprias regras e termos de uso, mas elas não podem contradizer as constituições federais e os acordos internacionais sobre a internet.  Um pouco complicado né? Para facilitar, pensamos em um exercício rápido para nos orientar: 

  • Imagine a internet como um espaço físico muito grande, como uma cidade. Para facilitar a convivência das diversas pessoas que habitam nesta cidade, são criadas as leis, que seriam as regras da rede.
  • Agora, pense na sua casa. Ela seria como uma rede social, algo criado pela sua família e por você. Dentro da sua casa as regras são vocês que fazem, mesmo tendo que respeitar as leis da cidade em que estão morando.

Ou seja, existe muita gente interessada na maneira como a internet funciona e de que forma as regras nesse espaço serão estabelecidas. Isso torna a governança da internet um exercício colaborativo, um processo multisetorial. Cada aspecto de como a internet irá funcionar acaba sendo definido em alguns fóruns de discussão e de tomada de decisão.

Os aspectos técnicos costumam ser discutidos por fabricantes de equipamentos, operadores de rede e  acadêmicos, já os provedores de internet e usuários de endereços de ip são os mais interessados em como eles serão distribuídos, enquanto governos, comunidades e registradores de domínio costumam participar de reuniões que discutem a gestão desses domínios. Mesmo tendo esses principais interessados, o ponto de uma governança multissetorial é que nenhum desses espaços é exclusivo, todos os interessados podem participar de todas essas discussões.  

São inúmeros os órgãos que atuam diariamente com todas essas questões mais técnicas da rede, porém o principal fórum para discutir os demais assuntos relacionados a internet como a sua universalização, a garantia da liberdade de expressão e associação na rede ou mesmo a privacidade dos usuários é o IGF (Internet Governance Forum) que é aberto e  acontece anualmente. 

Tá, globalmente eu entendi, mas não tem nada mais perto da nossa realidade?

Os países têm também órgãos próprios para estabelecer diretrizes relacionadas ao uso e ao desenvolvimento da rede. No Brasil, nós temos o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) fundado em 1995. O CGI.br é formado por 21 membros, com representantes do setor público, setor empresarial, terceiro setor (ONGs e fundações), comunidade acadêmica e um representante de notório saber em assuntos de internet. Existe ainda um IGF nacional e um regional para os países da América Latina (Lac IGF). O objetivo disso tudo é que as decisões sobre a rede sejam tomadas de forma transparente, responsável e inclusiva. 

Além de lidar com os aspectos técnicos para a segurança das redes e serviços de Internet no Brasil, recomendando procedimentos, normas e padrões operacionais; É uma responsabilidade do CGI.br a promoção de programas de pesquisa e desenvolvimento relacionados à Internet, incluindo indicadores e estatísticas. Por isso todo ano esse órgão, através do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), publica dados sobre o acesso à internet e à tecnologias de comunicação (aquelas estatísticas do início desse texto, vêm daqui!) e também promove cursos e eventos sobre temas relacionados a infraestrutura da  internet .   

Contudo, entretanto, todavia

Porém, como nós do Minas já aprendemos com os materiais de nosso grupo de estudos e também no último relatório de E. Tendayi Achiume, quando a relatora especial da ONU falou sobre formas contemporâneas de racismo, muitas tecnologias digitais reforçam e pioram a desigualdades raciais e de gênero. Principalmente quando grupos historicamente vulneráveis não estão sendo envolvidos diretamente na sua criação e tomadas de decisão a seu respeito. A internet é uma dessas tecnologias (sendo difícil até não imaginá-la como a própria definição de tecnologia), ou seja, seus fóruns de poder, por mais que tenham representantes de diversos setores, ainda são majoritariamente brancos e, a depender do assunto discutido, masculinos. 

Em 2015, por exemplo, de acordo com a assessora da Nic.br a época, Nathália Sautchuk,  ao observar dados sobre mulheres em IGFs nacionais e regionais, percebe-se que existe certo equilíbrio entre homens e mulheres como participantes dos Fóruns, mas que o mesmo não acontece na gestão do evento, tampouco nas mesas de debate. De acordo com a Nathalia, muitos palestrantes, naquela época, já comentavam sobre a necessidade de  observar também o papel das mulheres nos setores que já figuram eventos como esses.  Já que, em geral, as mulheres atuam somente nas áreas de humanas e muito pouco, nos setores técnicos da governança da internet. 

Já em 2019, o coletivo Blogueiras Negras, atentou para o fato de que enquanto em 2017 no IGF Brasil havia  apenas uma mesa de mulheres negras, em 2018 e 2019 não  houve mesas de mulheres negras, com exceção de uma  conversa sobre “soluções para o discurso de ódio” (2018).  

Esses dados refletem o que falamos no início desse texto sobre a baixa acessibilidade da internet por algumas camadas  da população brasileira. 85% da classe D e E tem acesso limitado à  internet, sendo que mulheres e negros são a maioria dessas classes. É um ciclo vicioso muito bem apontado pelas Blogueiras Negras: “se nós não temos sequer acesso a internet assim como ela é, imagina então estar no lugar de pensar jeitos, pautas, governança  e construção de tecnologias para a rede?” E a não-presença de mulheres e negros nesses espaços significa, muitas vezes, que suas pautas não serão levadas em consideração de forma efetiva pelos debatedores nesses espaços. 

Existem, ainda, vários outros códigos que tornam os fóruns de governança mais complicados de serem representativos em termos de gênero e raça, como o custo de participação em eventos/fóruns, a educação sobre como a internet e esses espaços funcionam e os idiomas em que esses eventos acontecem (quando internacionais).  

A questão central então é: mesmo a governança da internet se propondo multissetorial e diversa, quais são os representantes das empresas, ONGs, universidades  e  governos que são cotados para ocupar essas cadeiras nos grandes fóruns de discussão ou espaços de tomada de decisão? Essas organizações possuem mulheres e negros em posição de liderança relacionadas a tecnologia e internet?  

Alternativas para ocupar esses espaços são necessárias

Considerando todas problemáticas apresentadas, alternativas possíveis devem ser criadas para que mulheres e negros, em especial mulheres negras, ocupem esses espaços. Seja através de subsídio para participação em eventos ou, seja através de cotas em órgãos de governança. Essas são alternativas possíveis.

Existem porém, aquelas que são alternativas mais próximas ao que seria ideal, são programas que trazem formação, aliada a abertura de espaços para a participação de grupos socialmente mais vulneráveis nos espaços de governança da internet. Um exemplo delas é Youth@IGF Brasil, um programa, subsidiado por empresas privadas e organizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, por meio do qual jovens de 18 a 25 anos são escolhidos para, em uma primeira etapa, discutirem temas relacionados à governança da internet e em uma segunda fase, aqueles que demonstram maior liderança, conhecimento e cooperação, representam a juventude brasileira no IGF e no Lac IGF. Apesar de ter uma dificuldade quanto a diversidade entre os seus participantes, o  Youth nos ensina que além da participação em eventos como espectadores, precisamos também promover espaços de formação sobre esses temas a populações sub representadas, mostrando que ocupar cargos, ser convidado para falar em mesas ou sentir liberdade e para a proposição de atividades em fóruns de governança da internet é uma possibilidade que precisa ser construída. 

Um convite a mulheres e meninas negras

É preciso cada vez mais de nós, mulheres negras, ocupando todas os caminhos alternativos (os possíveis e os ideais) para preencher a brecha que nos coloca de fora das discussões de governança.  A internet é uma tecnologia que tem mudado a maneira como nos relacionamos, nos comunicamos e fazemos escolhas. O processo de moldar essa ferramenta não pode estar reservado para homens e brancos. A governança da internet precisa ser discutida por todas as pessoas, para que essa seja ferramenta transformadora de verdade e não apenas mais um instrumento de reprodução (e agravamento)  de desigualdade! 

O convite com esse texto é o de entender como a governança da internet funciona, relembrar a importância de uma presença grande de mulheres e negros em todas as esferas de tomada de decisão sobre tecnologia e, por fim, construir caminhos a serem seguidos por outras mulheres negras.