A entrevista de hoje é mega especial. Falamos com a Biamichelle: ela é formada em Matemática e Sistemas de Informação na UFRA, é analista de Infra estrutura da ThoughtWorks em São Paulo e mestranda da USP.

Ela nasceu em uma cidade do interior do Pará e seu interesse pelas ciências exatas foi despertado enquanto ela fazia o curso técnico em informática: “Para quem mora num bairro de periferia no interior, tendo um pai pedreiro e uma mãe assalariada da prefeitura, a hora de escolher a profissão tá bem desenhado: é aquela que pode trazer dinheiro mais rápido possível para dentro de casa, para ajudar nas despesas. Foi assim que escolhi a computação”.

Depois do técnico, Biamichelle entrou na Universidade, onde o espaço que deveria ser de desenvolvimento profissional e acadêmico trouxe também diversas experiências com machismo e racismo: “A expressão máxima das coisas que aconteceram na Universidade comigo, foi quando no último ano meu professor me disse, sem nenhum pudor, que meu lugar não era na computação e que eu não ia longe. Quando passei no mestrado em Sistemas de Informação na USP e vim para São Paulo, não nutri a esperança que seria mais fácil”.

Em São Paulo, ela não conseguia achar emprego na área. Se manteve conectada ao mundo da tecnologia através de espaços que possibilitavam o contato com a área, e que viabilizavam o debate sobre como é ser nortista, mulher e negra na computação: a Executiva Nacional de Computação e do Fórum Internacional de Software Livre. Através desses espaços, Biamichelle conheceu a ThoughtWorks, onde trabalha atualmente. 

Durante a entrevista, Biamichelle ressalta a importância de combatermos o racismo na tecnologia: “As pessoas parecem ter despertado mais para o debate sobre mulheres na tecnologia, embora ainda nos falte muito. O problema é que a discussão sobre raça ainda é escassa. Talvez seja pelo histórico de apagamento das nossas pautas”.

Para Biamichelle, contar com o apoio de uma rede de mulheres negras foi fundamental: “para entender o que era culpa dessa sociedade, do patriarcado, do racismo, da história e para aprender a como reagir em cada situação”. “Vejo atualmente vários grupos de meninas em tecnologia, de minas pretas se organizando e se ajudando. Fico pensando se eu tivesse esse apoio na época da graduação, minha resposta em frente ao machismo e racismo seria diferente”.

Gente, sério. Leiam cada linhazinha dessa entrevista que tá tudo sensacional.

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Minas Programam: Conta pra gente um pouco da sua história? 

Biamichelle: Sou de uma cidade do interior do Pará. Na época que morava na minha cidade fiz o curso técnico em informática, que era o que tinha na cidade, e que serviu para me despertar para as exatas e computação. E assim eu fiz. Fiz graduação em matemática e sistemas de informação. E na minha faculdade de Sistemas de Informação na UFRA, em Belém do Pará, foi onde percebi que minha sobrevivência no mundo da computação exigiria mais do que a minha vontade de atuar nessa área. Eu precisaria de mais do que força de vontade, precisaria entender que as coisas que aconteciam comigo na faculdade não se dava por questões individuais. Algumas sim, mas a maioria estava relacionada a quem eu representava. Como era de se esperar, não foi fácil. Acho que a expressão máxima das coisas que aconteceram na Universidade comigo, foi quando no último ano meu professor me disse, sem nenhum pudor, que meu lugar não era na computação e que eu não ia longe. Quando passei no mestrado em Sistemas de Informação na USP e vim para São Paulo, não nutri a esperança que seria mais fácil. E não foi. Minha mãe me perguntava porque eu, que tinha graduação e mestrado, não estava trabalhando na minha área… Para sobreviver eu trabalhava em tudo que me davam oportunidade: ajudante de papai noel, telemarketing, caixa de restaurante. Sozinha em São Paulo, não me dava o luxo de escolher qual lugar iria trabalhar.

Mesmo trabalhando em coisas totalmente diferente da minha formação, não me distanciei da Executiva Nacional de Computação e do Fórum Internacional de Software Livre, que eram os únicos espaços que eu ainda acreditava e que me deixavam ter um pouco de contato com a computação, e ainda fazer o debate sobre como é ser nortista, mulher e negra na computação. E foi nesse espaço, o FISL, onde conheci a ThoughtWorks e fui incentivada a enviar meu currículo. E até hoje ainda não acredito que alguém resolveu me dar uma oportunidade para me desenvolver e mostrar com o que posso contribuir sendo fruto de uma vida interdisciplinar e militante em computação como mulher negra. Agora, tento contribuir de maneira mais orgânica com o MariaLab.

Minas Programam: Como você escolheu sua área de atuação? Por quê escolheu estudar/trabalhar com isso?

Biamichelle: Para quem mora num bairro de periferia no interior, tendo um pai pedreiro e uma mãe assalariada da prefeitura, a hora de escolher a profissão tá bem desenhado: é aquela que pode trazer dinheiro mais rápido possível para dentro de casa, para ajudar nas despesas. Foi assim que escolhi a computação. Fiz um curso de computação para pelo menos saber como ligar e desligar o computador, que foi pago em n prestações, com o dinheiro dos trabalhos de digitação, impressão, xerox da plaquinha que coloquei na frente de casa. E então precisava me profissionalizar mais. Fui para o curso profissionalizante. Minha afeição pela exatas ajudou um pouco e deixei os outros gostos para as diversões (como a arte, música, literatura). E assim foi: curso de informática, técnico, pós-técnico, graduação, até chegar no mestrado. E se a conjuntura deixar, doutorado depois.

Minas Programam: Você teve/tem que lidar com racismo e machismo nas instituições (de ensino e de trabalho) que você frequenta? Se sim, como foi essa experiência? Quais os principais obstáculos que enfrentou?

Biamichelle: Até o curso técnico, eu fazia a linha “a melhor da sala”: ter boas notas, estudar, enfim. Sabe aquela linha do mérito? “Tenho que fazer o meu melhor para ser reconhecida a melhor”. Mas era inútil. Nos estágios, as primeiras pessoas que eram escolhidas para algo eram os meninos. Também era com eles que as conversas sobre tecnologias eram feitas, salvo algumas exceções.

Mas foi na Universidade que [o racismo e o machismo] ficaram mais evidentes. Desde a semana dos calouros parecia que o lugar das meninas era o de acompanhantes. A alternativa era fazer a linha grossa, a brother dos meninos, que ia rir das piadas (inclusive as machistas). Fugir dessa linha era pedir para não ter respeito.

Eu ainda precisava trabalhar, ainda precisava ser a melhor na sala, precisava pegar o ônibus cedo para ir para capital estudar e voltar para casa evitando assalto na estrada. E nada disso fazia diferença. Aliás, fazia diferença na hora de justificar porque os mesmos meninos, em geral brancos, eram escolhidos para quase todos os projetos. Não importava se eles soubessem ou não programar. Eles eram os escolhidos. 

“Fazer por mim” foi minha resposta inicial. E depois, com ajuda de amigos de outros cursos, conforme me descobri politicamente, veio o “fazer por mim e por outras iguais a mim”.

Desisti da universidade. Não larguei o curso. Mas desisti no sentido de esperar que algo fosse feito por mim. Tive professores ótimos, poucos. Mas me incomodei com muitos que se escondiam diante das barbáries de outros, escancaradamente machista e racistas. Um em especial me perseguiu até o final. Até o final!!! Foi ele quem disse que ali não era meu lugar, sem rodeios. Eu lembro que chorei muito no colo de uma professora, mas também lembro da cara dele quando me formei.

Mas na USP não foi diferente. Tive que escutar me mandarem me lavar, o que me desestabilizou. Tive que correr atrás de advogados sozinha em São Paulo. Não foi fácil. Saí do curso. Desisti. Não tinha forças de encontrar meu agressor. Passei um ano longe da Universidade até retornar novamente.

Acho que machismo e principalmente racismo não vão deixar de me acompanhar, seja na Universidade ou no trabalho. Nem sei dizer onde foi o local que mais sofri, mas tenho certeza que ainda vou sofrer. Não nutro falsas expectativas inclusive no local onde trabalho hoje: um ambiente que tá sensível e procurando melhorar. Mas lidamos com pessoas com histórias e privilégios diferentes, em graus diferentes. E situações podem acontecer.

Infelizmente hoje minha postura diante a Universidade é me manter o mais distante possível, mas eu sei que o racismo e o machismo dela não estão estão apenas nas situações que vivi. Estão presentes, por exemplo, no fechamento das creches da Universidade, impedido de mães estudantes concluírem ou ingressarem no curso. Estão presentes na oposição às cotas raciais e na aplicação de um processo seletivo extremamente elitizado, com conteúdo que certeza não é visto nas escolas  periféricas, onde estão muitos jovens pretos. O machismo e o racismo estão presentes na própria existência de um processo seletivo.

Hoje tô num ambiente de trabalho onde me chamam pelo meu nome, e não por “gostosa”, como foi num emprego na área de TI que tive no Pará. As pessoas investem em mim e entendem meus gap técnicos. E se colocam para me ajudar. E sei que em relação a isso, hoje sou privilegiada, já que nem todos os lugares são assim.

Minas Programam: Qual a importância de discutirmos gênero e raça nas ciências e tecnologia?

Biamichelle: Discutir esses temas é extremamente importante. Quando estava no Pará, amigos de outros cursos onde já se faziam esses debates me ajudaram. Em São Paulo, vejo atualmente vários grupos de meninas em tecnologia, de minas pretas se organizando e se ajudando. Fico pensando se eu tivesse esse apoio na época da graduação, minha resposta em frente ao machismo e racismo seria diferente. Inclusive a minha auto estima quando me formei e cheguei em São Paulo seria diferente. Ter com quem contar é fundamental. Mas também não posso negar que essas discussões têm uma função educativa para aqueles que querem mudar, que querem dialogar

As pessoas parecem ter despertado mais para o debate sobre mulheres na tecnologia, embora ainda nos falte muito. O problema é que a discussão sobre raça ainda é escassa. Talvez seja pelo histórico de apagamento das nossas pautas. Mas o racismo tá presente na área da tecnologia. Atualmente o filme sobre as três mulheres negras que trabalham na NASA no período da Guerra Fria, traz à tona novamente o debate, precisamos que ele não morra depois. Existe uma ideia na sociedade que o racismo foi superado.Ele não foi. E precisamos explicitar isso. O debate é uma ferramenta válida.

Minas Programam: Vivemos em um contexto de constante menosprezo do intelecto das mulheres negras: ao longo de suas trajetórias educacionais, meninas negras são pouco estimuladas a seguirem carreiras que fogem dos estereótipos de sempre. Como você acha que podemos quebrar esse ciclo? Que oportunidades fizeram a diferença pra você?

Biamichelle: É uma pergunta difícil. Acabar com o racismo depende de nós, mas não exclusivamente, no sentido de que não depende apenas da nossa força de vontade. Entretanto, algumas ações ajudam e muito. Me ajudaram, ajudaram várias meninas e isso faz diferença, na vida da meninas em particular e na comunidade que ela está inserida. Para mim o exemplo da minha mãe, e seu apoio fez diferença inicialmente para pensar em sair de dentro da casinha.

A rede de apoio de mulheres pretas também foi fundamental. Para entender o que era culpa dessa sociedade, do patriarcado, do racismo, da história… e também o que era idiotice humana. E foi fundamental para aprender a como reagir em cada situação. Lógico que na vida não tive ajuda só de mulheres pretas, mas dessas em especial vieram a força e a coragem para conseguir chegar aqui. Ainda não é o topo, mas certeza é um degrau acima de onde eu estava. Precisamos denunciar, nos fortalecer, criar ações para nós, ir para rua por nós. Não tem um único método: acredito que a junção de todos eles fazem a diferença nas nossas vidas pretas 🙂